terça-feira, 28 de outubro de 2008

7. Os electrões às voltas na rotunda com as luzes acesas

Fui pela primeira vez a Grenoble (França) em 1999, no âmbito do meu estágio de licenciatura, em cristalografia de raio-X de proteínas. Era um curso de uns três ou quatro dias sobre aplicações de feixes de raio-X produzidos num sincrotrão.

Um sincrotrão é um acelerador de partículas, um sítio onde (neste caso) os electrões andam a velocidades próximas da luz. Um electrão às voltas num acelerador de partículas é como um carro às voltas numa rotunda com os faróis acesos. Emite luz numa direcção tangencial à sua trajectória. No caso do carro às voltas na rotunda é luz visível, no do electrão raio-X.

O que me faz constantemente voltar a Grenoble é um sincrotrão, em que os electrões dão voltas de 600 metros e emitem raio-X a cada curva. O European Synchrotron Radiation Facility (ESRF).

Ao contrário de outros aceleradores de partículas, o ESRF não está enterrado e o túnel circular pode distinguir-se perfeitamente.

O que ponho à frente desse feixe de raio-X de alta intensidade são cristais de proteína. Um cristal é um sólido em que as moléculas estão todas orientadas da mesma maneira. Assim, quando a radiação incide no cristal todas as moléculas interagem com ela da mesma maneira. Se as moléculas estivessem cada uma virada para seu lado, a interacção de uma era anulada pela de outra, e no final não víamos nada. É o que acontece com um sólido amorfo.

Pormenor de uma cabine experimental (beamline) do ESRF. Quando o feixe de raio-X está "ligado" ninguém aqui pode estar. No entanto, entramos para introduzir as amostras e preparar a experiência.

Fazendo curta a história, pomos o cristal de proteína à frente do feixe de raio-X e parte da radiação é desviada em direcções muito definidas que são registadas num detector (semelhante a um CCD de uma máquina fotográfica digital). Na imagem obtida no detector aparecem uns pontinhos. Rodamos o cristal, incidimos mais raio-X e obtemos mais pontinhos. Por inacreditável que pareça, esses pontinhos têm informação sobre a estrutura (a forma em três dimensões) da proteína (a unidade que se repete no cristal).

Na sala de controlo, cheia de computadores e a salvo dos raios-X.

Mas em 1999 não estava muito para aí virado. Tinha decidido arranjar um emprego numa empresa quando acabasse o curso. Grenoble impressionou-me pelas montanhas, o próprio sincrotrão é imponente, mas lembro-me de ter pensado que provavelmente nunca mais lá voltaria. Por outras ocasiões pensei a mesma coisa.

Grenoble é o sítio onde estou sempre a voltar pela última vez.

10, 9, 8

terça-feira, 21 de outubro de 2008

8. As bactérias que trabalham para nós

O modo como fazemos as bactérias trabalhar para nós, ou seja produzir uma proteína que não é delas e não lhes serve para nada, mas que nos interessa, tem a sua inteligência e perversão.

A dada altura convencemo-las de que estão em perigo iminente e de que a única maneira de se salvarem é produzindo a proteína que nos interessa. O que elas fazem, se tudo correr bem. Depois, longe de se salvarem, o que acontece é que nós rebentamos com elas e tiramos a proteína lá de dentro. Felizmente ainda não há activistas dos direitos e bem estar das bactérias (e ainda bem, caso contrário deixaríamos de poder tomar antibióticos e regressaríamos ao inicio do século passado).

Regressado de York, foi à produção biotecnológica de proteínas que me dediquei no ITQB, em Oeiras. O que trouxe na bagagem foram essencialmente pequenos tubos, aparentemente vazios. Com o olho treinado, e sob luz directa, poderiam distinguir-se resíduos esbranquiçados no fundo de cada tubo, que na realidade continha ADN liofilizado (o branco não é do ADN, mas sim de proteínas associadas). Porções circulares de ADN, a que se chamam plasmídeos, cada um deles contendo um gene com a informação para construir uma proteína.

Inseridos os plasmídeos dentro das bactérias, e com a motivação adequada que já mencionei, elas estão dispostas a colaborar. Fazemos com que o objectivo da vida delas seja produzir a proteína que queremos. Este é o mesmo processo usado para produzir anticorpos (que também são proteínas) para fins terapêuticos. Uma actividade reconhecidamente meritória e perfeitamente enquadrada na sociedade. Que mais uma bactéria pode ambicionar?

10, 9

terça-feira, 14 de outubro de 2008

9. Os longos dias de York


Cedo no meu doutoramento, o que precisava de fazer era muito simples de dizer e mais difícil de fazer. Trabalho com proteínas, mas a história das proteínas começa no ADN. O ADN são os planos para construir proteínas. Assim à bruta, é isto.

Um gene não é mais do que uma porção de ADN, com uma sequência específica de quatro bases (Adenina, Timina, Guanina e Citosina), que são como peças de lego. Há um sinal de começar o gene, que é uma sequência específica de três bases (ATG). Cada três bases seguintes significam um determinado aminoácido. Por exemplo, GGC é uma glicina, o aminoácido mais simples que existe. Uma proteína é constituída por uma série de aminoácidos ligados uns aos outros. A alanina, outro aminoácido, escreve-se no ADN como GCC.

Uma proteína tem um número variável de aminoácidos. As que eu estudo têm cerca de 300. Assim, no ADN estão codificadas em genes com cerca de 900 bases. No final, há um sinal para parar (TGA), como quem diz "o gene acaba aqui, não há mais aminoácidos para esta proteína".

Por exemplo, a sequência de ADN:

ATG- GGC- GCC- GGC - TGA

Traduz-se por:

Começar - glicina - alanina - glicina - terminar

Claro que isto seria uma proteína com três aminoácidos. O que não é propriamente uma proteína. Mas a ideia é esta. E na realidade o sinal de começar também corresponde a um aminoácido, que é uma metionina. É a esta correspondência entre trios de bases de ADN e aminoácidos que constituem proteínas que se chama código genético.

Era precisamente isto que me levava a York. Fazer corte e costura com ADN. Uma actividade a que as pessoas normalmente chamam biologia molecular ou (mais em desuso) engenharia genética.

Não fui sozinho para York, fui com uma colega portuguesa, e estávamos interessados em proteínas de duas bactérias patogénicas. Campylobacter jejuni (causa diarreias) e Klebsiella pneumoniae (infecções hospitalares). E estávamos interessados em muitas!

Uma pipeta multicanal. Serve para medir e dispensar oito pequenos volumes ao mesmo tempo, usando oito pontas descartáveis.

A ideia era "cortar" o ADN que codificava as proteínas que nos interessavam e inseri-lo noutra bactéria mais simpática para os cientistas, que se chama Escherichia coli (mas podem chamar-lhe E. coli). Na realidade não inserimos o ADN original, inserimos um cópia da parte que nos interessa. E depois fazemos com que o objectivo da vida dessas bactérias seja produzir uma proteína que não é delas.

E assim se passavam os dias em York. Entre pipetas multicanal, muitos tubinhos pequeninos, tantos que não nos podíamos dar ao luxo de os numerar e apenas os conseguíamos identificar pela posição no suporte, numa lógica batalha naval. Começavam cedo, com um pequeno almoço insano, um almoço frugal (em geral uma sandes de queijo com tomate), uma corrida para o jantar (a cantina fechava muito cedo) e terminava também cedo com uma pint num pub. Era tudo cedo!

10

segunda-feira, 13 de outubro de 2008

10. Riscos e petiscos

É uma longa contagem decrescente que se aproxima agora do lançamento.

Não sei exactamente quando começou, vou escolher começar a contar desde que me resolvi despedir da empresa farmacêutica onde trabalhava para fazer um doutoramento. Troquei o subsídio de Natal, de férias, o bónus anual, o contrato sem termo certo e a respeitabilidade social de ter um emprego pelo conceito bem mais difuso de "fazer investigação" e "ter uma bolsa".

Não era que não precisasse de ganhar dinheiro para pagar as minhas contas todos os meses. Mas como infelizmente não acredito na reencarnação tenho que tentar fazer as coisas que quero nesta vida.

Filosofias à parte, simplesmente decidi arriscar e encontrei-me no final de Julho de 2002 desempregado. E optimista. Tal como em muitas ocasiões na vida, e ainda com os bolsos cheios dos subsídios de Natal e de férias, não antecipei a verdadeira dimensão dos obstáculos que estavam à minha frente. E ainda bem. Considero que a capacidade de subestimar as dificuldades é uma qualidade que tenho.

Em Setembro estava de volta ao Instituto de Tecnologia Química e Biológica (ITQB), em Oeiras, onde três anos antes tinha feito o meu estágio de licenciatura, no grupo de Cristalografia de Raio-X de proteínas. A mudança foi agradável. Deixei a fábrica com as tubagens de solventes inflamáveis que me passavam por cima da cabeça para um laboratório com vista para as vinhas da Estação Agronómica Nacional, que produzem as uvas com que se faz o excelente vinho de Carcavelos.

Comecei por me integrar num projecto em curso, com uma bolsa de investigação científica. Com esse trabalho e o que tinha feito no estágio de licenciatura na mesma área, fiquei com dois artigos científicos publicados, o que permitiu reforçar o meu currículo e melhorar as possibilidades de ganhar uma bolsa de doutoramento. Mesmo assim não ganhei. O meu trabalho de investigação na industria, protegido pelo segredo industrial e que não dá origem a publicações, não foi valorizado. Foi um daqueles momentos em que parecia que a vida me queria castigar por ter arriscado. Mas afinal só me queria dar um aviso. Pedi recurso da decisão e três meses depois acabou por me ser concedida a bolsa.

E foi assim que começou.

sexta-feira, 10 de outubro de 2008

Humor-ciência: O ovo cósmico

Há 13.7 mil milhões de anos o Universo estava num estado denso de enorme uniformidade, como os funcionários públicos da Região Autónoma da Madeira.


Num momento a que se convencionou chamar Big Bang, o Universo começa a expandir-se. Nas primeiras fracções de segundo ocorre uma fase de crescimento exponencial a que se convencionou chamar inflação cósmica ou taxas de juro do BCE.


À medida que o Universo continuava a aumentar os quarks e os gluões combinaram-se em bariões, como protões e neutrões, produzindo de algum modo a assimetria entre a matéria e antimatéria, o bem e o mal, Anakin Skywalker e Darth Vader, Agostinho da Silva e Rui Santos.


Com o tempo as regiões ligeiramente mais densas foram atraindo matéria, formando estrelas, galáxias, instituições e o Universo como o conhecíamos até à reforma da Segurança Social.

quarta-feira, 8 de outubro de 2008

Obrigado alforreca!


O prémio Nobel da Química deste ano foi para os cientistas que descobriram a proteína de fluorescência verde (GFP, na gíria de laboratório, de Green Florescence Protein) e o seu potencial como ferramenta de estudo bioquímico .

Desde os anos 50 que é conhecida uma alforreca (chamada Aequorea victoria) que emite luz verde. Isto acontece por causa de um fenómeno chamado bioluminescência (a energia libertada por reacções químicas é usada para emitir um fotão verde).

Descobriu-se (não à primeira!) que a origem da luz verde era a tal proteína, a GFP. A GFP também não emite verde assim sem mais nem menos. Há uma outra proteína, a aequorin, que emite uma luz azul quando é excitada quimicamente. Esse azul da aequorin vai estimular a GFP, que emite verde.

A fluorescência verde é por causa de uma sequência muito específica de três aminoácidos (serina - tirosina - glicina) dos 238 que constituem a GFP. Uma proteína é como se fosse uma serpentina construída com peças de 20 tipos (os aminoácidos).

A GFP é uma coisa porreira. Podemos colar a GFP a qualquer outra proteína que nos interesse (e isso fazemos com biologia molecular trivial) e ver onde ela está simplesmente acendendo uma lâmpada ultra-violeta. Mesmo dentro das células. Podemos saber onde estão proteínas que nos interessam, porque elas ficam verdes. Porque estão agarradas à GFP. Isto tem interesse para seguir o desenvolvimento de células nervosas ou o alastrar de células cancerosas, por exemplo.

Assim, a luz verde das alforrecas ilumina alguns caminhos das bio-ciências!

terça-feira, 7 de outubro de 2008

Humor-Ciência: Nobel da Química de há dois anos

[Sempre na crista da onda, um texto sobre o Nobel da Química de 2006]

Nobel da quimica pelo melhor entendimento da cerveja

O Nobel da Química de há dois anos foi atribuído pelas contribuições para o entendimento da base molecular da transcrição eucariota, permitindo compreender como é que as leveduras da cerveja traduzem o ADN para ARN.

Algum do aparato experimental usado pelo Dr. Roger Kornberg para estudar a transcrição da levedura Saccharomyces cerevisiae, o seu eucariota preferido, logo seguido da sua mulher. O laureado Nobel chegou a lançar no mercado a cerveja Kornberg 1664, que nunca atingiu no entanto a notoriedade da Kronenberg 1664, por razões meramente relacionadas com distribuição, já que a transcrição de ADN nas leveduras que fazem a Kornberg 1664 é irrepreensível.

sábado, 4 de outubro de 2008

Vote nas piadas da sua preferência

Escrever humor não tem piada nenhuma. É um exercício de rigor e técnica comparável à contabilidade ou à ginástica desportiva. Os profissionais do Inimigo Público exercem esta exigente actividade, por vezes com sacrifício pessoal, desde há cinco anos.

Para assinalar esse percurso de abnegação e sacrifício, o Inimigo Público ergueu um "site" comemorativo, uma rara oportunidade para contemplar os seus conteúdos humorísticos na "Internet" (isto porque no Inimigo ainda não dominamos as tecnologias da informação e nem sempre a D. Diolinda se dispõe a trocar a actividade de limpeza da redacção para nos ajudar a enviar coisas para a "Internet")

Clique nesta frase para obter uma ligação à linha do Inimigo na Internet

Nesse tal "site", uma maravilha da técnica e da modernidade, é possível fazer uma coisa nova que agora se chama "interacção". Assim, para além da contemplação, os leitores têm a oportunidade de fazer melhor que os profissionais treinados do Inimigo (não é difícil, basta ter de facto algum jeito, coisa de que não dispomos), votar nas melhores piadas e ofender-nos.

Não deixe de passar por lá, significaria muito para a equipa do Inimigo.

sexta-feira, 3 de outubro de 2008

Será do nemátodo?

Os candidatos a astronauta são uma espécie em vias de extinção. Restam 192. Antes do Verão eram mais de 8000.