Na sequência do post anterior (a propósito da importância dos bolseiros na formação de uma das mais importantes empresas de base tecnológica em Portugal, a Ydreams) reproduzo aqui um texto de opinião que publiquei no Público há uns meses:
Já passaram quase quatro meses e nada mudou. Os cientistas continuam em saldos. Se calhar só depois do mundial de 2018?
Sabia que há cientistas que ganham 745 euros? Que não têm direito a subsídio de desemprego, férias, Natal ou alimentação? Que não são aumentados há seis anos? Está naturalmente curioso de saber em que país, mas estou certo de que já adivinhou.Na altura decorria um processo de negociação com a tutela para a revisão do Estatuto do Bolseiro de Investigação Científica, que define as condições em que os bolseiros exercem a sua actividade. Depois de avanços a passo de caracol e recuos a galope, o Ministério da Ciência e Tecnologia mostrou-se finalmente interessado em falar com a associação que representa os bolseiros (ABIC) sobre a revisão do tal estatuto.
São os bolseiros de investigação científica! Uma designação infeliz para os jovens (e menos jovens) investigadores, pois classifica-os pelo tipo de regime contratual com que exercem funções, secundarizando a natureza da actividade (investigação). Faz tanto sentido como descrever um juiz como um "assalariado da justiça".
Os bolseiros podem-se distinguir segundo o tipo de bolsa que têm. Os BIC (bolsa de investigação científica) são licenciados e, independentemente da sua experiência ou competências, ganham 745 euros. Os BD (bolsa de doutoramento) têm em geral um excelente percurso académico e científico (não é fácil ganhar a bolsa!), são investigadores experientes e motivados, ganham 980 euros. O mesmo valor desde 2002, o que representa face à inflação acumulada uma perda de 18 por cento do poder de compra.
Pode-se argumentar que os bolseiros "estão em formação" e que "já é uma sorte estarem a ser pagos". Mas trata-se de adultos (uma licenciatura não se acaba antes dos 22-23 anos) com contas para pagar e legítimo direito à emancipação (ou um cientista tem que viver em casa dos pais?). E quanto à formação, creio que qualquer bom profissional está sempre em formação. Todas as carreiras têm fases e o doutoramento é apenas uma fase da carreira de um cientista.
Os bolseiros têm direito ao chamado "seguro social voluntário" - que é uma espécie de não sei o quê. Basicamente, a entidade que concede a bolsa paga contribuições para a Segurança Social, equivalentes ao salário mínimo. Este é o regime pelo qual estão abrangidas as pessoas que não têm rendimentos. Por que raio enfiaram os jovens investigadores aqui? Fazendo o Governo gala de integrar todas as classes profissionais no regime geral de Segurança Social, que coerência tem não incluir os bolseiros? Esta reivindicação tem sido sucessivamente negada pela tutela. Para que não haja dúvidas: os jovens investigadores querem ser integrados num regime de Segurança Social que outros grupos profissionais não querem porque acham que é mau!
Penso que é necessário criar a percepção social deste problema e da necessidade de evolução, começando pelos próprios investigadores e professores do quadro que trabalham com bolseiros e que beneficiam do seu trabalho, com quem publicam artigos e escrevem patentes. Creio que seria de todo justo e adequado que os cientistas e investigadores estabelecidos tomassem pública e politicamente o partido dos jovens investigadores. A alternativa é continuar o choradinho da fuga de cérebros. Não há fuga de cérebros. Há expulsão de cérebros. Se não fazem falta, isso é outra história. Mas sendo assim, digam.
Já passaram quase quatro meses e nada mudou. Os cientistas continuam em saldos. Se calhar só depois do mundial de 2018?
6 comentários:
De facto um título bem escolhido, saldos! eu lembro-me que em 2004, concorri à bolsa BD e já na altura me questionava, como vou viver com 980 euros com a casa por pagar (a prestação era e é ainda muito alta) .. contas e mais contas e tudo o resto. Pois não me deram a bolsa... felizmente :) arranjei um emprego e aqui estou ainda a fazer a tese .. mas com mais dinheiro :) pode demorar mais, mas só com a bolsa não sei como seria. Pelo que escreve ainda continuam os mesmos 980 euros e acrescente-se que não podemos ter mais outro meio de subsistência senão tiram-nos a bolsa. Cérebros para quê.. joguem mas é futebol! aí são milhares / milhões de euros e mais os apoios para os estádios e mundiais .. pois claro! Fora outras situações. É mesmo muito triste.
Concordo em absoluto. Não se compreende que se queira apostar no conhecimento e inovação como motor de desenvolvimento, sem apostar nas pessoas que trabalham para criar conhecimento e fazer investigação.
Nem como é possível sustentar politicamente que as bolsas não sejam aumentadas desde 2002. Ou que os bolseiros não tenham direito ao regime geral de segurança social, aquele que era suposto ser igual para "todos". Pelos vistos os bolseiros não fazem parte do "todos".
O resultado evidente é a desmotivação, os serviços mínimos e a emigração de recursos humanos de elevadíssima valia. Miraculosamente não de todos, o clima e a gastronomia ainda fazem maravilhas pelo sistema tencologico e científico nacional.
Os que ficam muitas vezes especializam-se não na investigação mas em ficar...
Caro David
De facto neste ano celebro um triste aniversário : os 20 anos da minha primeira bolsa. Desde então não soube fazer outra coisa do que ser bolseiro (se esquecemos o meu periodo triste de passagem pela Universidade privada). Ja tenho 40 anos, um filho que alimentar, e continúo sendo bolseiro.
Na minha humilde opinião, o que falta aos cientistas em Portugal é profissionalizarem-se. O problema é que o nosso produto "o conhecimento", resulta muito difícil de quantificar e avaliar.
Obrigado pelo post da Ydreams. Se houvesse empresários assim por todo o lado, de certeza que os bolserios estariam mais reconhecidos.
Grande abraço e continua assim !!
Paco
David, Nao entendi a tua ultima frase. O que queres dizer com "especializar-se em ficar"??
Caro Picuinhas
A especialização em ficar deve ter a ver com o que os americanos denominam "inbreeding". Na minha terra que somos muito mais prosaicos costumamos dizer que "melhor bebado conhecido que alcoólico anónimo"
obrigado, Francisco J. Enguita. Fiquei na duvida se era isso que dizes ou se iteracoes de bolsas ad eaternum ate que a morte os separe.
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