Quanto é que ganha um astronauta?

O nuclio propôs-me uma conversa com as estrelas da Festa das Estrelas, adolescentes envolvidos em projectos de astronomia na escola. Alguns eram fotógrafos de estrelas e cometas, outros viajantes de Marte, havia ainda aquecedores do Sol.

A ideia era falar sobre o processo de candidatura a astronauta.

Esclareci que a diferença entre mim e qualquer outra pessoa é apenas a iniciativa de me candidatar e mais informação sobre o processo. Aceitei. Outros candidatos foram convidados, acabámos por ir só eu e a Sílvia.

Plateia de jovens inteligentes e pro-activos.

"Quanto é que ganha um astronauta?"

[não faço a mínima ideia!]

"Não sei... deve ganhar menos que qualquer jogador do plantel do Benfica"

"Por isso é que eu jogo futebol"

[E eu, ainda vou a tempo?]

Seis semanas

Dear David Marçal,

We would like to inform you that your application has been submitted successfully and in time. We will now begin our evaluation and contact you within the next six weeks.

Once submitted, you can check the status of your application by browsing your data file where you can see the sentence "Your application has already been submitted and can not be changed" on each data page. This indicates a successful closure of your database.

Kind regards,

European Space Agency

Sete vidas

Às vezes as minhas sete vidas encontram-se num cruzamento qualquer. Outro dia, com a cabeça no espaço e o corpo puxado para o centro da Terra, pensava em possíveis textos para o Inimigo Público. Ocorreu-me um que era mais ou menos assim:

Astronautas portugueses vão trabalhar a recibos verdes e ser dispensados em órbita

Acabou por não acontecer.

Cabeça no espaço

A próxima fase no processo de selecção é uma ronda de testes psicológicos. A ESA disponibilizou no seu site alguns testes semelhantes aos que serão feitos aos candidatos.

8413

A ESA divulgou os números das candidaturas a astronauta. 7586 homens e 1430 mulheres enviaram o certificado médico classe 2 e preencheram o formulário de candidatura on-line. Os quatro novos astronautas estão entre estes 8413 candidatos de todos os países membros da ESA.

Há 210 candidatos portugueses, 192 homens e 28 mulheres.

Mais uma muito difícil

O João Garcia fez-se novamente aos Himalaias para escalar o Broad Peak (8047m). Faz parte do seu projecto pessoal de subir as catorze montanhas mais altas do mundo. Todas com mais de 8000 metros, sem recurso a oxigénio suplementar ou carregadores de altitude. O João já subiu a dez e apenas sete pessoas escalaram as catorze desta maneira.

É um grupo mais restrito que o dos astronautas.

A questão incontornável

O formulário de candidatura é extenso. Peso, altura, escola primária, experiência como piloto, trabalho ou trabalhei para ESA, nível de natação, desportos, porque é que eu quero ser astronauta, como é que eu acho que sou e o que penso que um astronauta faz, se já estive envolvido em actividades de cariz social, o que estudei, estaria disposto a viver na cidade das estrelas em Moscovo.

Would you be prepared to be a test subject in life science experiments?

Eu respondi sim. Não consigo deixar de imaginar uma conversa no futuro:

Bom, de vocês os quatro o David foi o único que pôs a cruzinha no sim, por isso...

Dear David Marçal,

Thank you for your application for the position of ESA Astronaut.

Your username is: david.marcal
Your password is: ********

We kindly ask you to fill in the online application form that you will find by accessing the following link:

https://astrosel.esa.int/

The application form consists of a number of questions regarding your personal situation, work experience, education and pilot experience. Please fill in this information as soon as possible. Be advised that the application form must be filled in by the VN Closing Date.

O astronauta

E eis que fui a uma conferência no Pavilhão do Conhecimento e conheci o astronauta Ernst Messerschmid, assim como o responsável pela divisão de astronautas da ESA, Horst Schaarschmidt. Em comum, tinham um nome difícil de pronunciar. Os astronautas passam a maior parte do tempo na Terra. Tipicamente esperam cinco a sete anos pela primeira missão e ao fim de catorze fizeram duas. Messerschmid participou numa missão do Challenger em 1985.

Fiquei a saber detalhadamente as várias fases do processo de selecção e também que no espaço não são precisas camas para dormir. Basta amarrar o saco cama para não flutuar por todo o lado.

Messerschmid é originalmente físico e trabalhou em aceleradores de partículas, como o CERN e o Desy (em Hamburgo). Algo que me é familiar. No âmbito do doutoramento fui frequentemente colocar as minha proteínas à frente de feixes de raios-X de alta intensidade produzidos por aceleradores de partículas. Já utilizei o Desy, mas mais frequentemente vou ao ESRF (Grenoble, França).

Apresentou uma "astronaut checklist". Ficou-me na memória sobretudo o último ponto:

"Don't let anyone tell you that is too hard"

O meu bilhete para a candidatura

O certificado médico classe 2 ficou eventualmente pronto e pude levantá-lo no INAC. É o mesmo documento que os pilotos privados de avião necessitam para voar. Para mim é o bilhete de entrada na candidatura a astronauta. Enviei-o em formato digital e a ESA devolveu-me uma palavra-passe para entrar no formulário de candidatura on-line.

A espera

"Boa tarde. Eu fiz um exame médico classe dois e queria saber se já está pronto... [e se viu algum dinossauro dançarino ultimamente] há umas duas semanas... eu nunca consigo falar com a sua colega... mas ontem liguei entre as duas e as quatro e meia... agradeço-lhe... nove seis... é esse... Boa tarde"

"Because it is there"

George Mallory foi um dos pioneiros e mais arrojados exploradores do Everest. A sua silhueta foi vista pela última vez numa abertura entre as nuvens no dia 6 de Junho de 1924, avançando com o seu jovem companheiro Andrew Irvine pela aresta noroeste da montanha mais alta do mundo. Mallory respondeu à pergunta"Why climb Everest?" de uma forma que se tornou mítica.

Riscos e amolgadelas

Depois marquei os exames e fiquei à espera. Tinha que estar lá às oito e meia da manhã, em jejum e com um frasquinho de urina. Começou muito bem, urino que nem um astronauta, podia ter enxido dois ou três. Consulta de oftalmologia, teste funcional respiratório, electrocardiograma, optometria, preencher o meu nome, morada e BI umas oito vezes. Iam-me dizendo que estava tudo bem.

A dado momento um médico pôs uma cruzinha no "não" em "problemas psiquiatricos" sem me perguntar nada. Gostei da confiança. Para o fim ficou a audiometria, ouvir barulhinhos fechado numa casota. Carregue no botão quando ouvir. Ainda me ocorreu perguntar se também contavam aquelas vozes normais que toda a gente ouve na sua própria cabeça e que dizem para matar pessoas na rua à machadada. Mas depois reconsiderei, ainda perdia a cruzinha dos "problemas psiquiatricos".

The right stuff

Os primeiros astronautas americanos: Gus Grissom, Alan Shepard, Scott Carpenter, Walter Schirra, Deke Slayton, John Glenn, Gordon Cooper.

Porque é que eu acho que tenho o "The right stuff?". Sou cientista. Faço escalada e alpinismo, já saltei de paraquedas (e de uma grua preso por um elástico pelos pés, mas isso não faço outra vez), sempre pratiquei desporto e não fumo. A primeira coisa que quis ser foi astronauta, mas acho que isso não conta.

Período de reflexão

Comecei a contar a ideia a todas as pessoas que conseguia. As reacções foram diversas. O riso foi comum, mas não levo a mal, sei que as pessoas se riem quando não sabem como reagir. Também houve incredulidade e preocupação, esta última deixou-me comovido.

Uma dúvida que me assaltava era o dinheiro. Para me candidatar precisava de um exame médico igual aos que fazem os pilotos privados de aviação e que custa 246,23 euros. E pagar os 246,23 euros não era garantia de passar. E eu tenho alguns riscos e amolgadelas, (nomeadamente nos olhos, uso óculos). E numa altura em que os jornais anunciam o apocalipse (petroleo, taxas de juro e alimentos em alta) não tinha certeza que os 246,23 euros não me fossem fazer falta. Contei ao Tiago, a quem a minha vida já esteve ligada por uma corda inúmeras vezes, nos Alpes e outras aventuras de escalada, que reagiu com sobriedade e disse "não é por causa disso que hás-de deixar de te candidatar".

Contei à Joana. Reagiu entusiasticamente e disse-me com simplicidade que achava óptimo que eu fosse astronauta e tinhamos que ver o filme "The right stuff". Pareceu-me bem.

A altura certa

Já não sei exactamente como me chegou a informação. Um email, uma notícia breve, não liguei muito. Até que no final de um espectáculo falei com a minha amiga Sílvia, que tinha ido a uma entrevista na ESA e conhecido um astronauta. Os astronautas eram reais, existiam, falavam, partilhavam taxis e em alguma altura foram candidatos a astronautas. O tal astronauta acabou por lhe dizer "porque é que não te candidatas? Tens a altura certa".

Havia também outra altura que me parecida certa. Estou a acabar de escrever a minha tese de doutoramento, mesmo que não queira é um período de mudança. "Se um tipo não arranja emprego na Terra tem que procurar noutros planetas". E movido por este mantra lúcido entrei em reflexão.